segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

CELEBRANDO A IMPUNIDADE NO TRÂNSITO

FLÁVIO PECHANSKY, PSIQUIATRA, DIRETOR DO CENTRO DE PESQUISA EM ÁLCOOL E DROGAS DO HCPA E DA UFRGS - ZERO HORA 06/01/2012


Não conheço detalhes do caso, à exceção das matérias jornalísticas publicadas desde o acidente que vitimou duas pessoas na praia no final de semana. O que sei é que uma motorista de 27 anos provocou um acidente com duas mortes e há a suspeita de que ela estivesse dirigindo embriagada, também conforme os relatos da mídia. Ao longo da semana, houve celebrações anacrônicas à porta do hospital onde ela e seu namorado se encontram, dado que as autoridades responsáveis pelo caso decidiram pela não necessidade de sua reclusão, após inicialmente esta ter sido considerada, pois havia o relato de dolo eventual (assumir o risco de matar ao dirigir embriagada e sem carteira de habilitação).

Estranha celebração, particularmente quando as famílias das vítimas encontram-se de luto. E em pânico, pela perspectiva sombria de impunidade que se desenha neste caso. Não havendo a coleta de bafômetro durante o flagrante, os exames clínicos – previstos em lei – teriam atestado o estado de embriaguez, segundo o delegado que lavrou o auto. Seria suficiente em diversos países, onde o teste de sobriedade na rodovia (field sobriety test) é uma prova legal obtida por policial treinado, e que é levada ao julgamento do motorista, sendo inclusive possível utilizá-la para aferir o efeito de outras substâncias psicoativas além do álcool.

Estudos recentes realizados pelo nosso grupo em duas cidades brasileiras mostram que os testes são capazes de informar se um motorista está intoxicado mesmo que ele não tenha se submetido ao teste do bafômetro. Mas o que está acontecendo conosco? Os casos de punição exemplar para motoristas embriagados ou drogas existem – mas são raros – e estão aí para provar que o método funciona. Porém, apesar de haver mecanismos que permitem punir em diversas instâncias os motoristas infratores – com ou sem bafômetro, com ou sem habilitação, com ou sem um bom advogado –, o que temos visto é uma inversão da lógica: a celebração da impunidade, de “vícios no processo”, que facilmente descaracterizariam a matéria legal. Falta de preparo dos agentes policiais rodoviários? Falta de preparo dos delegados? Dos juízes? Não sabemos. Mas falta de preparo se corrige com evidências e com treinamento, o que é fácil fazer. O mais difícil parece ser uma inversão da nossa cultura histórica, em que o que deveria ser celebrado é a punição exemplar – e não a impunidade exemplar, como tem sido retratado na mídia.

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